Glorificado seja o Deus inútil
- José Luiz Carvalho
- 1 de ago. de 2019
- 5 min de leitura
Muita gente em meu círculo de amizade me pergunta por que é que continuo sendo cristão, mesmo reconhecendo toda a problemática história do cristianismo e a vergonhosa atuação de grande parte dos cristãos, especialmente dos seus líderes, no mundo em que vivemos. Nesse vídeo, vou tratar um pouco sobre esse incômodo e refletir sobre uma questão que, em princípio, pode parecer correta: “Para quê Deus serve?”
Sobre a história do cristianismo, quero indicar aqui para vocês o livro “A Memória do Povo Cristão”, escrito pelo historiador belga, radicado no Brasil, Eduardo Hoornaert, que busca valorizar o viés popular nos relatos do início do cristianismo. A fé que estabelece é sempre conforme a versão dos que detém o poder a cada momento, mas sempre há vozes dissonantes, como esse canal aqui, para perpetuar o caráter popular, marginal e subversivo do cristianismo original.
Infelizmente, não é assim que a fé cristã majoritária se apresenta no mundo contemporâneo. Pelo contrário, ela é a expressão exata de alguns dos pensamentos mais nocivos do tempo em que vivemos.
Nos últimos dois séculos, o mundo ocidental experimentou a escalada do pragmatismo e do utilitarismo em todos os campos da vida humana. O pragmatismo afirma que os componentes vitais da verdade fundamentam-se naquilo que tem sentido prático, ou seja, naquilo que funciona. Já o utilitarismo prescreve que a verdade deve servir sempre para a produção do bem-estar humano. Essas duas visões de mundo têm influência tão ampla que, por óbvio, a religiosidade não poderia ficar de fora.
Especialmente por meio do crescimento das igrejas pentecostais a partir das décadas de 50 e 60, mas, sobretudo, com o o surgimento e disseminação das igrejas neopentecostais já nas décadas de 70 e 80, os ideais pragmáticos e utilitários tomaram forma na religiosidade cristã de tal maneira que, hoje em dia, todos os ramos do cristianismo (inclusive o protestantismo reformado e o catolicismo) precisam apresentar uma proposta que satisfaça a estes ideias, sob pena de perda maciça de seus fiéis. Slogans como o “Pare de Sofrer” da Igreja Universal do Reino de Deus, ou o “Venha estar de bem com a vida” da Igreja Renascer em Cristo, encarnam com perfeição o pragmatismo e o utilitarismo no âmbito religioso.
Trabalhando a partir dessa lógica, eles respondem à questão “Para quê Deus serve?” propagando a ideia de um Deus útil, um instrumento indispensável num cotidiano perigoso e temível. Um Deus que dá prosperidade financeira, tira enfermidade e arruma casamento.
Na cosmovisão evangélica dos nossos dias, “O mundo jaz no maligno”, portanto, essa relação pragmática e utilitária com Deus é extremamente necessária para sobreviver neste mundo. A relação com Deus é vista, então, como somente mais uma ferramenta para o bem viver, ainda que para muitos seja “a mais importante”.
Porém, não é esse Deus que eu reconheço nas páginas da Bíblia e não é essa relação com Ele que as Escrituras prescrevem.
Jó, personagem reconhecido por manter sua fé mesmo em meio aos maiores sofrimentos, nos ensina que sem nenhum bem viemos a este mundo e assim partiremos dele (Jó 1.20-22), no que é confirmado pelo apóstolo Paulo de que nada trouxemos a este mundo e nada levaremos dele (1Tm 6.7-10).
O profeta Habacuque nos testemunha de maneira belíssima essa fé que está para além de uma ferramenta útil pra conseguir viver nesse mundo: “Ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto na vide; o produto da oliveira minta, e os campos não produzam mantimento; as ovelhas sejam arrebatadas do aprisco, e nos currais não haja gado, todavia, eu me alegro no Senhor, exulto no Deus da minha salvação” (Hc 3.17-18).
É esta relação desinteressada com Deus que aprendemos nas páginas do Antigo e do Novo Testamento.
Nos Evangelhos, especialmente, a relação pragmática e utilitária com Deus é condenada e atribuída àqueles que apenas desejam vantagens materiais, mas não recebem o Pão Vivo que desce dos céus (Jo 6.22-40).
Na figura desse Pão Vivo que desce dos céus, Jesus se coloca como o alimento e sustento próprio para a vida do cristão. Ele afirma que “aquele que come a minha carne e bebe meu sangue, permanece em mim e eu, nele”. Isso escandaliza muita gente, mas é apenas uma declaração dos primeiros cristãos que reverbera os sinais e símbolos da Eucaristia celebrada apontando para a vida de entrega total de Cristo pelos seres humanos e para o fato de que o cristão é chamado a essa mesma entrega, recebendo a Cristo como alimento e vivendo dentro de si!
Assim, gente simplesmente humana, que possuem defeitos e virtudes, como você e eu, somos chamados a nos alimentar dessa lógica que confronta a maneira que a visão de mundo da maior parte de nossa sociedade, nos entregar pelo nosso próximo, a alimentar quem tem fome, a dessedentar quem tem sede, a visitar os encarcerados, enfim, a viver a vida pela lógica do reino de Deus e não pelo pragmatismo e pelo utilitarismo do tempo presente. Jesus nos diz, ainda, textualmente na relação com Deus os cristãos devem buscar, “em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça e todas estas coisas vos serão acrescentadas” (Mt 6.33).
E o que seria esse reino de Deus de que Jesus fala? O apóstolo Paulo responde dizendo que o reino de Deus é “justiça, paz e alegria no Espírito Santo”. Acredito que você concorde que um mundo em que há justiça, paz e alegria é um mundo pelo qual vale a pena lutar, não é mesmo?!
É num mundo como esse que gente como o pastor Martin Luther King acreditava, inspirado pelos ideais de Cristo, como ele mesmo diz: “Tenho a audácia de acreditar que os povos em todos os lugares podem fazer três refeições por dia para seus corpos, ter educação e cultura para suas mentes e dignidade, igualdade e liberdade para seus espíritos.”
É sintomático que você não ouça da boca da maioria dos pastores e padres do nosso tempo definições do reino de Deus como esta. A religião deles não é essa, mas a religião do tempo presente, que coloca o pragmatismo e o utilitarismo em primeiro lugar.
Já há muito tempo e enquanto eu puder, vou denunciar a prática desses líderes que vêm vendendo a religiosidade cristã ao pragmatismo e ao utilitarismo e enganando pessoas inebriadas com a mensagem de um Deus útil e ao dispor do ser humano, que trará soluções para o desemprego e para a enfermidade.
Contra isso, continuo reafirmando a minha fé em um Deus inútil! Sim, para esta lógica pragmática e utilitária Deus é, de fato, inútil! Não serve para dar bom emprego! Para isso, é muito mais eficaz ter uma boa formação acadêmica ou, até, uma boa indicação. Deus não serve para dar saúde! As enfermidades sobrevêm sobre todos os tipos as pessoas, como estamos vendo nesses tempos de pandemia global. E o ideal é que todos tenham acesso a uma saúde pública, universal e gratuita. Ou, pelo menos, a um bom plano de saúde.
A lógica na pergunta “Para quê Deus serve?” acaba sendo completamente deturpada. Por isso, ela não cabe na minha visão de mundo. Aliás, se Deus serve para alguma coisa é apenas para me inspirar a continuar buscando ser um ser humano mais humano, tentando olhar todas as pessoas a partir de uma visão de que todos são dignos de viver em um mundo onde reina a justiça, a paz e a alegria!
Vamos juntos, então, proclamar a fé nesse Deus Inútil!
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