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O que é Religião? #2 - Símbolos da Ausência

  • Foto do escritor: José Luiz Carvalho
    José Luiz Carvalho
  • 30 de mar. de 2020
  • 5 min de leitura

Hoje, vamos dar continuidade às conversas sobre o nosso tema “O que é religião?”, baseado nesse livro aqui do Rubem Alves. No nosso primeiro vídeo, falamos acerca do primeiro capítulo (Perspectivas), que trata do desenvolvimento do pensamento sobre a religião no mundo ocidental.

Neste vídeo, nós vamos falar sobre o segundo capítulo do livro: 2. Os símbolos da ausência.

Devo confessar que esse é um dos trechos que mais gosto da obra pela forma poética com que o Rubem Alves consegue demonstrar essa marca distintiva do ser humano em meio a todas as espécies, que é a sua capacidade de transcendência, de ir além dos limites que a própria natureza o impõe.

Ele inicia com uma citação simples e clara do filósofo britânico Albert Camus: “O homem é a criatura que se recusa a ser o que ela é”. (Albert Camus)

A partir de então, ele tece um belo texto acerca da sabedoria contida nos corpos dos animais que, a despeito de não possuírem uma forma de comunicação elaborada, passam de geração em geração, há milhares e milhões de anos, as informações necessárias à sobrevivência da espécie.

A observação importante aqui é que essa sabedoria faz parte de um ciclo hermético, fechado, que no passado era chamado genericamente de “instinto” e, hoje, os cientistas chamam de comportamento inato ou geneticamente programado, moldado pela seleção natural.

Os seres humanos diferenciam-se desses animais por não se limitarem a essa repetição eterna dos comportamentos e, ao contrário, faz de tudo para dominar não apenas a natureza à sua volta, mas o seu próprio corpo. À diferença dos animais, o ser humano não é o seu corpo, ele tem o seu corpo. E sobre o corpo ele projeta as aspirações daquilo que ele chama de desejo. Para exemplificar isso, ele usa a figura de um bebê: “Aqui está uma criança recém-nascida. Do ponto de vista genético ela já se encontra totalmente determinada: cor da pele, dos olhos, tipo de sangue, sexo, suscetibilidade a enfermidades. Mas, como será ela? Gostará de música? De que música? Que língua falará? E qual será o seu estilo? Por que ideais e valores lutará? E que coisas sairão de suas mãos? E aqui os geneticistas, por maiores que sejam os seus conhecimentos, terão de se calar.”

Enquanto os animais produzem com seu corpo coisas sempre iguais e dependentes das capacidade naturais, o ser humano cria esculturas, pinta quadros, escreve poemas, planta jardins. Utilizando aqui toda a sua experiência de psicanalista bem treinado, ele cria uma relação entre esses objetos criados e o desejo, que é sempre símbolo de uma ausência. Só há desejo quando o objeto desejado não está presente.

Desse modo, ele propõe que o ser humano produziu a cultura como forma de saciar desejos, como símbolo de ausências ansiadas.

Nesse ponto, eu gostaria de indicar para quem gosta e desejaria se aprofundar no assunto esse livro: “O Homem e Seus Símbolos”, concebido e organizado pelo psiquiatra e psicoterapeuta Carl Gustav Yung, um dos fundadores da psicologia analítica, e que mergulha fundo nos símbolos de religiões ancestrais buscando compreender as origens da psique humana.

Mas, voltando ao nosso tema, Rubem Alves fala da cultura como essa teia de expressões da criatividade humana nos seguintes termos: “A sugestão que nos vem da psicanálise é de que o homem faz cultura a fim de criar os objetos do seu desejo. O projeto inconsciente do ego, não importa o seu tempo e nem o seu lugar, é encontrar um mundo que possa ser amado.”

Para ele, de maneira natural a cultura conduziu o seres humanos aos símbolos, que são como horizontes: quanto mais nos aproximamos deles, mais fogem de nós. No entanto, estão sempre a nos cercar por todos os lados e nunca deixam ser o nosso alvo, o nosso referencial para a caminhada, ainda que jamais seja alcançado, como expressão de uma eterna ausência, mas que nunca deixa de nos motivar a caminhar.

O Chico Buarque tem uma frase que expressa dolorosamente essa força de um horizonte inatingível, símbolo de uma ausência desejada:

Saudade é o revés de um parto,

É arrumar o quarto do filho que já morreu.

(Chico Buarque in “Pedaço de Mim”)

A saudade é uma das mais poderosas forças criativas da cultura e dos símbolos. E é precisamente aqui, no limiar entre saudade, cultura e símbolos, que vemos surgir a religião, como teia de sentidos, rede de desejos, confissão de esperanças, horizonte dos horizontes. A religião surge pela capacidade humana de atribuir valor a nomes, coisas e gestos que, aparentemente, são comuns. O sagrado surge quando os seres humanos passam a eleger lugares, objetos e situações como símbolos que têm o poder de exorcizar o medo e protege-los das forças destrutivas do caos.

A religião passa, então, a dominar o imaginário humano como forma de acessar e vislumbrar um mundo invisível, algo que o zen-budismo chama de “satori”, a iluminação, a compreensão, a abertura de um terceiro olho que possui o poder de acessar a visão das coisas que realmente dão sentido à vida.

Aqui, como forma de explicar de maneira mais clara a força dos símbolos religiosos para aqueles que não possuem uma experiência com o sagrado, Rubem Alves se vale de uma analogia da obra de Antoine de Saint-Exupery, “O Pequeno Príncipe”. Ele fala acerca do encontro do menino com um animal, até então, desconhecido: a raposa:

- "Você quer me cativar?"

- "Que é isto?", perguntou o menino.

- "Cativar é assim: eu me assento aqui, você se assenta lá, bem longe. Amanhã a gente se assenta mais perto. E assim, aos poucos, cada vez mais perto..."

E o tempo passou, o principezinho cativou a raposa e chegou a hora da partida.

- "Eu vou chorar", disse a raposa.

- "Não é minha culpa", desculpou-se a criança. "Eu lhe disse, eu não queria cativá-la. .. Não valeu a pena. Você percebe? Agora, você vai chorar!"

- "Valeu a pena sim", respondeu a raposa. "Quer saber por quê? Sou uma raposa. Não como trigo. Só como galinhas. O trigo não significa absolutamente nada, para mim. Mas você me cativou. Seu cabelo é louro. E agora, na sua ausência, quando o vento fizer balançar o campo de trigo, eu ficarei feliz, pensando em você..."

E o trigo, dantes sem sentido, passou a carregar em si uma ausência, que fazia a raposa sorrir.

Esse é exatamente o poder do discurso religioso: transformar coisas brutas e vulgares em portadoras de sentido, em símbolos de uma ausência, em simulacros do desejo, possuindo o poder do imaginário e da fantasia. A partir de então, ele tenta desfazer uma injustiça com relação a essas duas formas de linguagem.

Como falamos em nossa primeira conversa, o mundo moderno colocou a imaginação e a fantasia num lugar próximo à mentira e à invenção. Num mundo onde reina o pensamento científico e tecnológico, sobra pouco ou nenhum espaço para a imaginação e a fantasia. Entretanto, para a religião essa é a linguagem que produz a esperança enquanto não se alcança o objeto do desejo. Nas palavras de Sartre: imaginação e fantasia são "encantações destinadas a produzir a coisa que se deseja..."

A religião, então, é uma das formas que o ser humano encontra para saciar sua sede de sentido:

“Na raiz mais profunda de qualquer cultura ou religião, existe a vida humana, existe o chão comum de todos os povos. O poço onde todos bebemos! A cultura, a tradição, é como um caminho que cada povo vai abrindo para chegar a esse poço e matar a sua sede.” (Paulus)

Para concluir, me lembrei de uma citação do próprio Rubem Alves em um outro livro, que demonstra poeticamente essa o tamanho da ambivalência e do paradoxo da religião como forma de encontrar sentido para a vida. Ele diz:

“Sou um construtor de altares.

Construo altares à beira do abismo escuro e silencioso.

Eu os construo com poesia e música.

Os fogos que neles acendo iluminam o meu rosto. E me aquecem.

Mas o abismo permanece escuro e silencioso."

(Rubem Alves, Perguntaram-me se acredito em Deus)

Nossas expressões religiosas dizem muito sobre nós, nossos sonhos e nossos desejos. Mas Deus permanece sempre Mistério, como um abismo escuro e silencioso.

 
 
 

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